Entrevista
Hamilton Borges Onerè |
Hamilton Borges Onire
Secretario general de la 4ª Internacional Garveyista Panafricanista Cimarrron para America Latina e portavoz da Campaña Reaja
Hoje a Revista Reparacion Africana voz da 4ª Internacional panafricanista Garveyista 4IPGC, conversamos com um rosto africanos que não fala e muito menos vive somente para si. Alguém que tem feito de sua trajetória lutadora uma via de organização e centralidade para nosso povo e uma das grandes referências de autodeterminação e coletividade. Falamos com Hamilton Borges, militante da organização Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto. Mais que corpos pretos e africanos em movimento, as e os militantes da Reaja são agentes de um fluxo de conscientização, mobilização e organização a nível nacional e internacional.
• Reparacíon Africana: Em primeiro lugar peço a benção a nosso mais velho e agradeço pela vitalidade e fertilidade nas ações e coordenadas em nossa luta política. Por favor, conte-nos um pouco sobre sua trajetória.
Hamilton Borges: Meu pai lhe abençoe, motumbá. Eu não sei se eu consigo responder essa pergunta objetivamente, porque a minha história em relação a religiosidade tem muito tempo, é da minha própria família. Desde minha avó, que inclusive era de nação Angola, da raiz Bate Folha. Mas eu fui iniciado na nação Ketu. Era um momento diferente, numa relação diferente do que acontece hoje. Paralelamente, anos depois de minha iniciação eu ingressei no Movimento Negro e ali eu tive todo entendimento do que significava essa relação com a religiosidade, a ancestralidade e a luta contra o racismo, entendi que o espaço do terreiro sempre foi um espaço de luta, um espaço de reterritorialização, portanto, sempre foi um espaço de embate, combate, mas também de negociação. A raiz que faço parte, que tem como árvore principal a Casa Branca - eu sou das águas do Gantuá - sempre teve condições maiores de proteção a partir de negociação.
• RA: Motumbá axé! Como nasce a Reaja?
Hamilton Borges: Na verdade eu sempre fui de organização política. Fui do Movimento Negro Unificado, fui militante dessa organização que era na época uma organização radical como a reaja é hoje, uma organização que abriu o caminho pra todos esses debates que estamos fazendo agora sobre religiosidade, o debate sobre sexualidade, mulher negra, cultura, encarceramento, brutalidade policial, todas essas questões. Entre 2003/2004 o MNU já tinha feito o que, no meu entender, era uma radicalização pra dentro de uma ideia de tomar o poder, via apropriação de governo. Só que eles não estavam no poder! Nem na apropriação do governo, porque a apropriação de governo pela esquerda que se deu nesses últimos dezesseis, dezessete anos, se deu com os brancos da esquerda no poder. Os negros sempre foram coadjuvantes, nunca estiveram em nenhum lugar de destaque, ainda não estão. Enfim, passei muito tempo fora de Salvador, estando em Belo Horizonte, depois em São Paulo. Aqui em Salvador o movimento tinha se afastado das bases comunitárias e das próprias comunidades. Então resolvi fazer esse debate. Surgiu o genocídio como a questão central. Na verdade o genocídio não era tratado como é tratado hoje, foi a gente que trouxe esse debate pra baila, a gente começou a discutir a brutalidade policial, enfrentar grupos de extermínio e criamos a Reage a princípio como uma campanha. O objetivo da gente era dar visibilidade a situação de morte e criar mecanismos de luta. Nós fizemos uma marcha que reuniu trinta países e vinte e sete estados. Pessoas entregaram ofícios e documentos na embaixada da Espanha, da Alemanha, da França e dos Estados Unidos. Colocamos o debate dentro das instituições acadêmicas, dentro das universidades, projetos de pesquisa, pessoal do Governo e das ONG's coopitaram esse debate pras financiadores entrarem com mais dinheiro, não necessariamente pra atuar de forma concreta, então a gente sempre fez isso. Quando a gente viu que chegou nesse patamar, pensamos "não precisa mais ter a campanha Reaja". Decidimos investir em outro instrumento, a Quilombo X, ação cultural comunitária. Houve então a morte de 12 meninos do Cabula, aquilo foi uma pedrada na gente! Concluimos que não tínhamos condições de parar, mas também a gente não tinha condição de manter a reaja como campanha, ela precisava ser uma organização política e foi o que a gente fez, institucionalizou a campanha como organização política. Não como ONG, nada com CNPJ, nada disso! A gente então se transformou em organização política, com autonomia, que acredita em ação comunitária, que acredita em radicalização da luta e etc. Essa foi a história. No dia 12 de maio de 2005, depois de meses fazendo reuniões em comunidades, nós resolvemos ocupar a Secretaria de Segurança Pública e durante aproximadamente 12 horas. Fechamos o tráfego pela manhã e começamos os processos de luta da Reaja, que consiste em em ajudar as mães e filhos. Fortalecer, desde o funeral até as as outras questões mais estruturais, além de busca por justiça. Conseguimos internacionalizar a luta contra o genocídio, conseguimos ser uma referência nacional internacional.
• RA: A Reaja é uma organização reconhecidamente construída por mulheres. O senhor pode nos falar sobre a importância da agência feminina em nossos espaços de Construção política?
Hamilton Borges: Sendo adoxo, espiritualmente eu sou um vaso feminino, logo eu sou mulher. Desde a palavra Yawo, que significa noiva/esposa do Orixá passando pela roupa do Santo, que é roupa de núpcia até que me caso com Orixá e uso uma aliança que é o kele. Além disso, a gente da Reaja encarou as lutas mais difíceis. A gente nunca procurou os universitários, pessoal que tá nas ONGs, o pessoal bem alimentado, bem treinado, etc. A esteve presente para os mais duros, as pessoas que estavam sendo baleadas, atingidas, mortas, as pessoas desempregadas, as pessoas com o teto desabando, para as pessoas presas. Então a gente percebeu por meio de bservação mesmo, pela participação na vida cotidiana da comunidade e na luta, que eram as mulheres que estavam nesses lugares da comunidade. Os homens estão invariavelmente no bar. O pouco dinheiro que eles recebem - quando recebem - é drenado pelo bar. As mulheres não abandonam os seus filhos. As mulheres tem feito esses filhos se tornarem inclusive universitários, conquistarem melhores empregos. As mulheres alimentam os homens da comunidade, as mulheres organizam essas comunidades, se não forem as mulheres, cadê a vida? As mulheres são o centro de tudo na luta política e isso a gente constatou quando olhou pra Reaja. Tínhamos uma maioria de mulheres dentro da Reaja e essas mulheres eram quem realmente operavam, escreviam, organizavam e faziam tudo acontecer. Elas impulsionam a Reaja permitindo que a organização se tornasse a força que ela é. As nomeamos como comando vital ao invés de coordenação. Uma coordenação é geralmente ligada a ação masculina, então a gente nomeou um comando vital feminino para a Reaja. E tem o comando ostensivo, que são os homens que cumprem as tarefas. Esse é o fundamento da Reaja. Kristen Smith fala que quando o Estado atira numa criança, ele está mirando no útero da mulher. Então a mulher é o centro de tudo que nós temos, entende?!
• RA: Neste cenário de chacina, recentemente nossa população teve mais um filho tombado. Quem foi Micael? Como a Reaja entende esse caso e prestou apoio a família?
Hamilton Borges: A Reaja está dentro das comunidades mais distantes, essas comunidades com mais dificuldade, onde a polícia esculacha mesmo, onde o Índice de Desenvolvimento Humano é mais baixo do que dos bairros nobres que estão ao lado, que não tem coleta de lixo, não tem serviços, não tem emprego. As pessoas conhecem a Reaja, sabem que a Reaja é a única voz que elas podem ter nessa situação, porque a gente não tem mais nada a perder, a gente não acredita mais em nada disso que está colocado. Então, a gente coloca nosso corpo à disposição da luta política e dá voz às pessoas. O caso de Micael não é diferente, as pessoas nos sinalizaram, a gente entrou em contato com a família, no outro dia fomos pro inteiro do menino e procedeu o ato, que é pra dar visibilidade pra que a gente não morra em silêncio. É uma das coisas que a gente fala, a gente não vai morrer em silêncio! Agora estamos no processo de coleta de assinaturas pra o pedido de uma audiência com o comandante da Polícia Militar no sentido de retirar de lá a viatura e o policial que matou o menino. A viatura fica circulando pela rua da casa do menino, circulou durante o ato com arma na mão nos intimidando, nos ameaçando. Além disso, o comandante também vai precisar dizer qual foi a natureza da operação que resultou no assassinato de uma criança de 11 anos. A gente precisa saber como está o inquérito administrativo e também entrar em contato com o Ministério Público e com o Tribunal de Justiça pra que a recomendação do STF do Rio de Janeiro de parar as operações do policiais. Que a recomendação aconteça aqui, porque não é só no Nordeste, em vários isso está acontecendo.
• Reparación Africana: Como atuam os eixos dessa grande organização?
Hamilton Borges: Ao longo do tempo a Reaja veio criando instrumentos, mecanismos, dispositivos de defesa. Por exemplo, logo no começo da reaja, a gente fazia roda pra discutir masculinidade, que hoje virou moda né? Quem fazia esse debate e me inspirou muito foi Osmando Pinho. Ele era um homem negro que escrevia sobre isso e outro era um médico paulista (eu morei um tempo em São Paulo) chamado Sérgio que, além de fazer o debate teórico, também fazia as ações práticas. Então, a gente fazia rodas com homens das comunidades, das periferias e discutia a masculinidade, a interação com as mulheres. Tivemos o projeto Conversa Ao Pé Do Fogão. Além disso, conseguimos ganhar a confiança dos prisioneiros do sistema prisiona e levamos o debate intenso sobre a sexualidade dentro da cadeia. Como os homossexuais eram tratados e cronstruímos dispositivos lá dentro pra os homossexuais e travestis serem tratados com dignidade. Coonstruímos um Cine Club comunitário dentro e fora da cadeia permanentemente. Nos tributos que a gente fazia, colocava palanque pro pessoal das artes poder atuar, tirando a cultura e os debates apenas do centro da cidade. Uma das primeiras tarefas dessa organização política foi ali perto dos corpos dos meninos mesmo. Fizemos uma marcha e debatemos por um longo tempo. Começamos a criar instrumentos potentes de enfrentamento. A gente criou um banco, produção pra vender Nibes, cacau pra fora do país e gerar renda tanto pra cuidar das coisas da reaja, como pra cuidar da AFAP - Associação de Familiares e Amigos de Presos - Conseguimos um terreno aqui no centro em Salvador pra criação de cabra, peixe, criar uma série de atividades com prisioneiros que saíssem da cadeia. A gente criou a escola, que era um lugar pequeno, um um cômodo, tinha que caber todo mundo ali naquelas telhas de amianto e vários educadores voluntários se revezando e montamos nossos próprios móveis. A partir da fabricação dentro da cadeia, os militantes da reaja presos fizeram os móveis. A gente é grato a vida inteira a Lázaro Ramos! Ele não gosta de falar isso, mas eu acho que é ruim não dizer o quanto ele é uma pessoa importante que se preocupa. Depois a gente passou pra um espaço de três andares com laje, com quintal e as crianças tiveram mais espaço pra brincar. Alimentar essas crianças, proporcionar educação pra elas e seus familiares é o que gente tem feito esse tempo todo e ao mesmo tempo que a gente faz isso, a gente é criticado, sobretudo por pessoas ligadas a grupos partidários, mas também alguns grupos panafricanistas que ficam dentro do Facebook com a mão cheia pra criticar, mas a gente vê pouca prática. Muita gente aprendeu com a gente, ainda que não fale, depois da gente, surgiu um monte de escola, mas as pessoas não dizem "olha, eu aprendi ali" porque as pessoas vieram pra cá, participaram, beberam da água, mas elas não deram o direito autoral que a gente tem. Nós temos coragem, a gente vai e faz! Outro empreendimento que a gente criou aqui foi uma fábrica de sonhos, que é como se chama um doce que tem aqui. A fábrica faliu, mas é isso que é a Reaja, a gente tenta, as coisas não dão certo, a gente tenta outra coisa e tenta de novo, nós inventamos a teoria do geral do fracasso, não temos medo de fracasso, nosso povo vive no fracasso o tempo todo se levanta o tempo todo também. Abrimos uma horta agora, vamos abrir outras hortas. A gente começou a vender frutas na rua, agora a gente tá com um projeto que, pras pessoas mais pobres da comunidade é gratuito, mas as pessoas que já tem uma condição fortalecem a organização. Fazemos a desinfecção do coronavírus com o material apropriado, segundo as regras da ANVISA. Osmeninos que trabalham, recebem parte desse dinheiro e parte vai pra reaja, é uma espécie de pecuária. Então, a gente tem feito muita coisa.
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• Reparación Africana: Sabemos que o Brasil tem como base histórica o genocídio da população africana. O senhor, em diálogos com a juventude, nos alerta que as migalhas da branquitude são a expressão de nossa invisibilidade nessa realidade cruel. Poderia nos falar um pouco sobre isso?
Hamilton Borges: O que eu tô querendo dizer é que existe uma uma questão que é formulada por um homem americano que mora na África do Sul, que é sobre a nossa presença ser uma ausência, a gente tá num lugar que é de não existência, de uma existência de segunda categoria, a nossa humanidade não é levada em conta, não tem expressão. Vou dar alguns exemplos no cenário político nacional tem pessoas negras que são fundamentais na história política dos anos setenta pra cá e elas não figuram em momento nenhum a esfera política, elas não existem na esfera política. A presença delas é uma ausência. No governo Lula quem eram os negros? uns três ou quatro negros saíram com dignidade desse governo. No governo Bolsonaro, quem é o negro? Um negro que defende Bolsonaro e que coloca nome dele como Hélio Bolsonaro e diz que a luta racial não tem significado, que todo mundo é humano, que Deus fez todo mundo igual. A atribuição da consciência racial e da identidade dele é mostrar que o dente é escuro, que a gengiva é escura, o nariz grosso! Não tem humanidade nele, tem esses arquétipos, esses estereótipos. Mas no governo Lula não foi diferente, entendeu? No cenário político, portanto, agora grande a grande representação do que nós somos, é esse atual ministro da educação, um homem negro retindo, que é desqualificado. Durante os os noticiários, durante a cena política, em menos de uma semana ele destruído, mas quando demolem ele, as pessoas ficam perguntando o que os outros negros tem a dizer como se a a experiência individual dele tivesse respeito as escolhas individuais de todos os negros, mas o que Bolsonaro faz não tem a ver com todos os brancos! A classe média negra liberal, com mentalidade liberal não quer uma mudança, ela quer se integrar a um prédio que eles mesmos já disseram que é corroído. Eles dizem o que o racismo estrutura a sociedade brasileira, o racismo é estrutural, mas querem entrar num prédio com defeito. Eles deveriam querer demolir o prédio com defeito, não entrar no prédio com defeito e são essas pessoas que hoje nos representam. A gente senta no sofá dos programas de televisão e agora nós pedimos as celebridades brancas que elas emprestem a sua presença, confirmando que nós não temos presença, entendeu? Nós somos ausência. Essa pra mim, é uma análise que tem que ser feita, as pessoas não fazem, elas ficam querendo falar de coisas sem profundidade. Não fazem porque são bestas não, viu? Elas fazem isso porque elas são covardes
Reparación Africana: Daria algum conselho pra juventude que está buscando referências?
Hamilton Borges: Eu não quero ser deselegante, nem quero ser mal criado, né? Mas eu não acho que eu tenha qualquer conselho a dar pra nova geração ou pra outra geração, porque eu não me considero fora do ambiente da luta nem fora da arena, entende? Eu acho que cada um tem que encontrar seu caminho. Agora o que eu posso dizer é que esse caminho tem que ser fundamentado numa verdade inquestionável, tem que fincar e listar princípios que regem um grupo. Talvez o conselho que eu diria pra eles é não aceitar conselhos! Tem que dialogar, tem que ouvir, tem que respeitar e o respeito tem que ser de um lado pra outro. Para nós que somos iniciados em Candomblé isso tem um valor muito grande: "meu mais velho", respeito a mais velho, eu sou mais velho do que minha dofonitinha, a nossa diferença é de horas, mas ela me respeita, mesmo se a gente não se vê, entende? Então tem que ter respeito, só que as pessoas no mundo social pegaram esse negócio de mais velho, mas elas não respeitam de verdade. Enquanto aquele mais velho tá falando coisas que elas concordam, beleza. Quando discordam, elas brigam então não adianta, tem que fincar esses princípios que trouxeram a gente até aqui e cada grupo fazer a boa caminhada. Não tem qualquer possibilidade de nenhuma mudança pras pretas e pretos no Brasil sem organização. Tem que ter organização de carater nacional, que envolva debates sobre trabalho, terra, economia, reforma hídrica, reforma política. Nós podemos fazer uma política pra fora do parlamento, pra fora da política que tá aí, se a gente tiver território, entendeu? Então, eu repito, não é por arrogância nem por má vontade, mas eu num eu acho que ninguém deve ouvir conselho, entendeu? Deve dialogar caminhos, é diferente. Tem muitos mais velhos que estão aí há trinta anos fazendo a mesma coisa e só fizeram arruinar a nossa luta, entende? E tem muito homem preto e mulher preta que está chega agora e não vem só, ele vem carregado de muita gente atrás dele e eu preciso respeitar sua avó, morta ou viva ,sua bisavó, sua tataravó. Então eu tenho que te tratar da mesma forma, assim eu aprendi na minha casa de Santo: "A bença" "meu pai lhe abençoe a bença", entende?
Sao Paolo: Uhuruafrikatv
Mona Asuama directora Internacional |
Hamilton Borges: Meu pai lhe abençoe, motumbá. Eu não sei se eu consigo responder essa pergunta objetivamente, porque a minha história em relação a religiosidade tem muito tempo, é da minha própria família. Desde minha avó, que inclusive era de nação Angola, da raiz Bate Folha. Mas eu fui iniciado na nação Ketu. Era um momento diferente, numa relação diferente do que acontece hoje. Paralelamente, anos depois de minha iniciação eu ingressei no Movimento Negro e ali eu tive todo entendimento do que significava essa relação com a religiosidade, a ancestralidade e a luta contra o racismo, entendi que o espaço do terreiro sempre foi um espaço de luta, um espaço de reterritorialização, portanto, sempre foi um espaço de embate, combate, mas também de negociação. A raiz que faço parte, que tem como árvore principal a Casa Branca - eu sou das águas do Gantuá - sempre teve condições maiores de proteção a partir de negociação.
• RA: Motumbá axé! Como nasce a Reaja?
Hamilton Borges: Na verdade eu sempre fui de organização política. Fui do Movimento Negro Unificado, fui militante dessa organização que era na época uma organização radical como a reaja é hoje, uma organização que abriu o caminho pra todos esses debates que estamos fazendo agora sobre religiosidade, o debate sobre sexualidade, mulher negra, cultura, encarceramento, brutalidade policial, todas essas questões. Entre 2003/2004 o MNU já tinha feito o que, no meu entender, era uma radicalização pra dentro de uma ideia de tomar o poder, via apropriação de governo. Só que eles não estavam no poder! Nem na apropriação do governo, porque a apropriação de governo pela esquerda que se deu nesses últimos dezesseis, dezessete anos, se deu com os brancos da esquerda no poder. Os negros sempre foram coadjuvantes, nunca estiveram em nenhum lugar de destaque, ainda não estão. Enfim, passei muito tempo fora de Salvador, estando em Belo Horizonte, depois em São Paulo. Aqui em Salvador o movimento tinha se afastado das bases comunitárias e das próprias comunidades. Então resolvi fazer esse debate. Surgiu o genocídio como a questão central. Na verdade o genocídio não era tratado como é tratado hoje, foi a gente que trouxe esse debate pra baila, a gente começou a discutir a brutalidade policial, enfrentar grupos de extermínio e criamos a Reage a princípio como uma campanha. O objetivo da gente era dar visibilidade a situação de morte e criar mecanismos de luta. Nós fizemos uma marcha que reuniu trinta países e vinte e sete estados. Pessoas entregaram ofícios e documentos na embaixada da Espanha, da Alemanha, da França e dos Estados Unidos. Colocamos o debate dentro das instituições acadêmicas, dentro das universidades, projetos de pesquisa, pessoal do Governo e das ONG's coopitaram esse debate pras financiadores entrarem com mais dinheiro, não necessariamente pra atuar de forma concreta, então a gente sempre fez isso. Quando a gente viu que chegou nesse patamar, pensamos "não precisa mais ter a campanha Reaja". Decidimos investir em outro instrumento, a Quilombo X, ação cultural comunitária. Houve então a morte de 12 meninos do Cabula, aquilo foi uma pedrada na gente! Concluimos que não tínhamos condições de parar, mas também a gente não tinha condição de manter a reaja como campanha, ela precisava ser uma organização política e foi o que a gente fez, institucionalizou a campanha como organização política. Não como ONG, nada com CNPJ, nada disso! A gente então se transformou em organização política, com autonomia, que acredita em ação comunitária, que acredita em radicalização da luta e etc. Essa foi a história. No dia 12 de maio de 2005, depois de meses fazendo reuniões em comunidades, nós resolvemos ocupar a Secretaria de Segurança Pública e durante aproximadamente 12 horas. Fechamos o tráfego pela manhã e começamos os processos de luta da Reaja, que consiste em em ajudar as mães e filhos. Fortalecer, desde o funeral até as as outras questões mais estruturais, além de busca por justiça. Conseguimos internacionalizar a luta contra o genocídio, conseguimos ser uma referência nacional internacional.
• RA: A Reaja é uma organização reconhecidamente construída por mulheres. O senhor pode nos falar sobre a importância da agência feminina em nossos espaços de Construção política?
Hamilton Borges: Sendo adoxo, espiritualmente eu sou um vaso feminino, logo eu sou mulher. Desde a palavra Yawo, que significa noiva/esposa do Orixá passando pela roupa do Santo, que é roupa de núpcia até que me caso com Orixá e uso uma aliança que é o kele. Além disso, a gente da Reaja encarou as lutas mais difíceis. A gente nunca procurou os universitários, pessoal que tá nas ONGs, o pessoal bem alimentado, bem treinado, etc. A esteve presente para os mais duros, as pessoas que estavam sendo baleadas, atingidas, mortas, as pessoas desempregadas, as pessoas com o teto desabando, para as pessoas presas. Então a gente percebeu por meio de bservação mesmo, pela participação na vida cotidiana da comunidade e na luta, que eram as mulheres que estavam nesses lugares da comunidade. Os homens estão invariavelmente no bar. O pouco dinheiro que eles recebem - quando recebem - é drenado pelo bar. As mulheres não abandonam os seus filhos. As mulheres tem feito esses filhos se tornarem inclusive universitários, conquistarem melhores empregos. As mulheres alimentam os homens da comunidade, as mulheres organizam essas comunidades, se não forem as mulheres, cadê a vida? As mulheres são o centro de tudo na luta política e isso a gente constatou quando olhou pra Reaja. Tínhamos uma maioria de mulheres dentro da Reaja e essas mulheres eram quem realmente operavam, escreviam, organizavam e faziam tudo acontecer. Elas impulsionam a Reaja permitindo que a organização se tornasse a força que ela é. As nomeamos como comando vital ao invés de coordenação. Uma coordenação é geralmente ligada a ação masculina, então a gente nomeou um comando vital feminino para a Reaja. E tem o comando ostensivo, que são os homens que cumprem as tarefas. Esse é o fundamento da Reaja. Kristen Smith fala que quando o Estado atira numa criança, ele está mirando no útero da mulher. Então a mulher é o centro de tudo que nós temos, entende?!
• RA: Neste cenário de chacina, recentemente nossa população teve mais um filho tombado. Quem foi Micael? Como a Reaja entende esse caso e prestou apoio a família?
Hamilton Borges: A Reaja está dentro das comunidades mais distantes, essas comunidades com mais dificuldade, onde a polícia esculacha mesmo, onde o Índice de Desenvolvimento Humano é mais baixo do que dos bairros nobres que estão ao lado, que não tem coleta de lixo, não tem serviços, não tem emprego. As pessoas conhecem a Reaja, sabem que a Reaja é a única voz que elas podem ter nessa situação, porque a gente não tem mais nada a perder, a gente não acredita mais em nada disso que está colocado. Então, a gente coloca nosso corpo à disposição da luta política e dá voz às pessoas. O caso de Micael não é diferente, as pessoas nos sinalizaram, a gente entrou em contato com a família, no outro dia fomos pro inteiro do menino e procedeu o ato, que é pra dar visibilidade pra que a gente não morra em silêncio. É uma das coisas que a gente fala, a gente não vai morrer em silêncio! Agora estamos no processo de coleta de assinaturas pra o pedido de uma audiência com o comandante da Polícia Militar no sentido de retirar de lá a viatura e o policial que matou o menino. A viatura fica circulando pela rua da casa do menino, circulou durante o ato com arma na mão nos intimidando, nos ameaçando. Além disso, o comandante também vai precisar dizer qual foi a natureza da operação que resultou no assassinato de uma criança de 11 anos. A gente precisa saber como está o inquérito administrativo e também entrar em contato com o Ministério Público e com o Tribunal de Justiça pra que a recomendação do STF do Rio de Janeiro de parar as operações do policiais. Que a recomendação aconteça aqui, porque não é só no Nordeste, em vários isso está acontecendo.
• Reparación Africana: Como atuam os eixos dessa grande organização?
Hamilton Borges: Ao longo do tempo a Reaja veio criando instrumentos, mecanismos, dispositivos de defesa. Por exemplo, logo no começo da reaja, a gente fazia roda pra discutir masculinidade, que hoje virou moda né? Quem fazia esse debate e me inspirou muito foi Osmando Pinho. Ele era um homem negro que escrevia sobre isso e outro era um médico paulista (eu morei um tempo em São Paulo) chamado Sérgio que, além de fazer o debate teórico, também fazia as ações práticas. Então, a gente fazia rodas com homens das comunidades, das periferias e discutia a masculinidade, a interação com as mulheres. Tivemos o projeto Conversa Ao Pé Do Fogão. Além disso, conseguimos ganhar a confiança dos prisioneiros do sistema prisiona e levamos o debate intenso sobre a sexualidade dentro da cadeia. Como os homossexuais eram tratados e cronstruímos dispositivos lá dentro pra os homossexuais e travestis serem tratados com dignidade. Coonstruímos um Cine Club comunitário dentro e fora da cadeia permanentemente. Nos tributos que a gente fazia, colocava palanque pro pessoal das artes poder atuar, tirando a cultura e os debates apenas do centro da cidade. Uma das primeiras tarefas dessa organização política foi ali perto dos corpos dos meninos mesmo. Fizemos uma marcha e debatemos por um longo tempo. Começamos a criar instrumentos potentes de enfrentamento. A gente criou um banco, produção pra vender Nibes, cacau pra fora do país e gerar renda tanto pra cuidar das coisas da reaja, como pra cuidar da AFAP - Associação de Familiares e Amigos de Presos - Conseguimos um terreno aqui no centro em Salvador pra criação de cabra, peixe, criar uma série de atividades com prisioneiros que saíssem da cadeia. A gente criou a escola, que era um lugar pequeno, um um cômodo, tinha que caber todo mundo ali naquelas telhas de amianto e vários educadores voluntários se revezando e montamos nossos próprios móveis. A partir da fabricação dentro da cadeia, os militantes da reaja presos fizeram os móveis. A gente é grato a vida inteira a Lázaro Ramos! Ele não gosta de falar isso, mas eu acho que é ruim não dizer o quanto ele é uma pessoa importante que se preocupa. Depois a gente passou pra um espaço de três andares com laje, com quintal e as crianças tiveram mais espaço pra brincar. Alimentar essas crianças, proporcionar educação pra elas e seus familiares é o que gente tem feito esse tempo todo e ao mesmo tempo que a gente faz isso, a gente é criticado, sobretudo por pessoas ligadas a grupos partidários, mas também alguns grupos panafricanistas que ficam dentro do Facebook com a mão cheia pra criticar, mas a gente vê pouca prática. Muita gente aprendeu com a gente, ainda que não fale, depois da gente, surgiu um monte de escola, mas as pessoas não dizem "olha, eu aprendi ali" porque as pessoas vieram pra cá, participaram, beberam da água, mas elas não deram o direito autoral que a gente tem. Nós temos coragem, a gente vai e faz! Outro empreendimento que a gente criou aqui foi uma fábrica de sonhos, que é como se chama um doce que tem aqui. A fábrica faliu, mas é isso que é a Reaja, a gente tenta, as coisas não dão certo, a gente tenta outra coisa e tenta de novo, nós inventamos a teoria do geral do fracasso, não temos medo de fracasso, nosso povo vive no fracasso o tempo todo se levanta o tempo todo também. Abrimos uma horta agora, vamos abrir outras hortas. A gente começou a vender frutas na rua, agora a gente tá com um projeto que, pras pessoas mais pobres da comunidade é gratuito, mas as pessoas que já tem uma condição fortalecem a organização. Fazemos a desinfecção do coronavírus com o material apropriado, segundo as regras da ANVISA. Osmeninos que trabalham, recebem parte desse dinheiro e parte vai pra reaja, é uma espécie de pecuária. Então, a gente tem feito muita coisa.
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• Reparación Africana: Sabemos que o Brasil tem como base histórica o genocídio da população africana. O senhor, em diálogos com a juventude, nos alerta que as migalhas da branquitude são a expressão de nossa invisibilidade nessa realidade cruel. Poderia nos falar um pouco sobre isso?
Hamilton Borges: O que eu tô querendo dizer é que existe uma uma questão que é formulada por um homem americano que mora na África do Sul, que é sobre a nossa presença ser uma ausência, a gente tá num lugar que é de não existência, de uma existência de segunda categoria, a nossa humanidade não é levada em conta, não tem expressão. Vou dar alguns exemplos no cenário político nacional tem pessoas negras que são fundamentais na história política dos anos setenta pra cá e elas não figuram em momento nenhum a esfera política, elas não existem na esfera política. A presença delas é uma ausência. No governo Lula quem eram os negros? uns três ou quatro negros saíram com dignidade desse governo. No governo Bolsonaro, quem é o negro? Um negro que defende Bolsonaro e que coloca nome dele como Hélio Bolsonaro e diz que a luta racial não tem significado, que todo mundo é humano, que Deus fez todo mundo igual. A atribuição da consciência racial e da identidade dele é mostrar que o dente é escuro, que a gengiva é escura, o nariz grosso! Não tem humanidade nele, tem esses arquétipos, esses estereótipos. Mas no governo Lula não foi diferente, entendeu? No cenário político, portanto, agora grande a grande representação do que nós somos, é esse atual ministro da educação, um homem negro retindo, que é desqualificado. Durante os os noticiários, durante a cena política, em menos de uma semana ele destruído, mas quando demolem ele, as pessoas ficam perguntando o que os outros negros tem a dizer como se a a experiência individual dele tivesse respeito as escolhas individuais de todos os negros, mas o que Bolsonaro faz não tem a ver com todos os brancos! A classe média negra liberal, com mentalidade liberal não quer uma mudança, ela quer se integrar a um prédio que eles mesmos já disseram que é corroído. Eles dizem o que o racismo estrutura a sociedade brasileira, o racismo é estrutural, mas querem entrar num prédio com defeito. Eles deveriam querer demolir o prédio com defeito, não entrar no prédio com defeito e são essas pessoas que hoje nos representam. A gente senta no sofá dos programas de televisão e agora nós pedimos as celebridades brancas que elas emprestem a sua presença, confirmando que nós não temos presença, entendeu? Nós somos ausência. Essa pra mim, é uma análise que tem que ser feita, as pessoas não fazem, elas ficam querendo falar de coisas sem profundidade. Não fazem porque são bestas não, viu? Elas fazem isso porque elas são covardes
Reparación Africana: Daria algum conselho pra juventude que está buscando referências?
Hamilton Borges: Eu não quero ser deselegante, nem quero ser mal criado, né? Mas eu não acho que eu tenha qualquer conselho a dar pra nova geração ou pra outra geração, porque eu não me considero fora do ambiente da luta nem fora da arena, entende? Eu acho que cada um tem que encontrar seu caminho. Agora o que eu posso dizer é que esse caminho tem que ser fundamentado numa verdade inquestionável, tem que fincar e listar princípios que regem um grupo. Talvez o conselho que eu diria pra eles é não aceitar conselhos! Tem que dialogar, tem que ouvir, tem que respeitar e o respeito tem que ser de um lado pra outro. Para nós que somos iniciados em Candomblé isso tem um valor muito grande: "meu mais velho", respeito a mais velho, eu sou mais velho do que minha dofonitinha, a nossa diferença é de horas, mas ela me respeita, mesmo se a gente não se vê, entende? Então tem que ter respeito, só que as pessoas no mundo social pegaram esse negócio de mais velho, mas elas não respeitam de verdade. Enquanto aquele mais velho tá falando coisas que elas concordam, beleza. Quando discordam, elas brigam então não adianta, tem que fincar esses princípios que trouxeram a gente até aqui e cada grupo fazer a boa caminhada. Não tem qualquer possibilidade de nenhuma mudança pras pretas e pretos no Brasil sem organização. Tem que ter organização de carater nacional, que envolva debates sobre trabalho, terra, economia, reforma hídrica, reforma política. Nós podemos fazer uma política pra fora do parlamento, pra fora da política que tá aí, se a gente tiver território, entendeu? Então, eu repito, não é por arrogância nem por má vontade, mas eu num eu acho que ninguém deve ouvir conselho, entendeu? Deve dialogar caminhos, é diferente. Tem muitos mais velhos que estão aí há trinta anos fazendo a mesma coisa e só fizeram arruinar a nossa luta, entende? E tem muito homem preto e mulher preta que está chega agora e não vem só, ele vem carregado de muita gente atrás dele e eu preciso respeitar sua avó, morta ou viva ,sua bisavó, sua tataravó. Então eu tenho que te tratar da mesma forma, assim eu aprendi na minha casa de Santo: "A bença" "meu pai lhe abençoe a bença", entende?
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